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Impressões de um dia no metrô: estética do cotidiano

Uma viagem pelos transportes públicos de São Paulo, uma história de suas vítimas


Por, Caio Andrade

A caminhada para movimentar-se pela cidade é sempre grande demais. Várias vistas com incontáveis ângulos, que resguardam calados seus específicos problemas. São geralmente abafados pela esperança de qualquer mudança e pelos fones de ouvido que não saem das músicas de resistência. O percurso toma essa mesma direção, até mesmo quando debaixo da terra. Apesar do aparente funcionamento dos transportes a sujeira ou as assustadoras verdades estão soterradas na estranha ordem.
13 horas de uma segunda-feira, Osasco. Estou atrasado 10 minutos para chegar à entrevista marcada no café, entre travessas da Avenida Paulista, às 15h. A situação torna-se particularmente trágica, porque o caminho é longo, mesmo com a quantia de tempo à disposição. De repente, uma senhora com seus lá tantos 60 anos começa a soltar frases revoltadas e de refinadas ofensas ao pobre do motorista do ônibus que não havia chegado. Nem mesmo a playlist conseguiu suportar uma pessoa tão experiente assim esbravejando de maneira tão rude, afinal é difícil algum morador osasquense nunca ter passado por atrasos de ônibus, tão comum quanto o típico sol ensolarado. Era alguém simples, sem nada de especial. Branca, cabelos acinzentados num tom leve de roxo, maquiagem exagerada, saia preta justa ao corpo, blusa regata esgarçada na barra, um chinelo cheio de pedrinhas e uma bolsa de vinil barato vermelho forte que brilhava incansavelmente no reflexo do sol. Apenas mais alguém na cidade, mas não podia negar que aquela mulher se destacava por sua particularidade vaidosa.

Largo de Osasco - Foto, Caio Andrade

-Que inferno de ônibus que não passa, cê tem que esperar uma vida, nesse droga de ponto quente. Já podia estar morta nessas horas. Cê arregaça os bolsos com impostos pra’queles políticos desgraçados e não vê um A de melhora nessa cidadezinha acabada. Meu jovem você sabe que horas esse ônibus passa?

-Bom, acho que daqui a pouco deve passar, está apenas alguns minutinhos atrasado.

-“Apenas”, “apenas alguns minutos”... Mas não pode ser. Você deveria estar mais irritado que eu... Qual seu nome, menino?

- É Caio, senhora.

-Então, Caio, a cada dia isso daqui tá pior que o dia anterior, cê tem que estudar, viu, meu filho? Nada nessa vida se arranja sem estudo. Estuda bastante que a coisa tá preta pra gente.

-Claro, você tem toda a razão, é algo funda...

-Mas já era hora dessa porcaria desse ônibus vir!

Assim o diálogo que começara num estalo terminou da mesma forma, no momentâneo disparo de pensamento daquela figura destacada no ponto cheio. Nas poucas palavras deferidas entre mim e ela, havia um ponto em que estávamos de acordo: estudar é importante. Mesmo certo dessa importância, penso que muitas pessoas não dão o devido respeito nem para o estudante e nem para o estudo de fato.
Poucos minutos depois dessa conversa, o problema da senhora falante aconteceria novamente, só que com outra pessoa. Depois de ir em direção ao cobrador do veículo, escuto a voz da senhora, que discutia fervorosamente com o motorista de semblante quase verde pelo calor do itinerário longo. Noto que o veículo estava até vazio, apesar do horário de lotação. Alguns passos à frente, uma menina estava lendo, não parecia notar nada do que acontecia fora das folhas, e foi aí que a situação se armou contra a presa. Logo após, passar pela catraca enferrujada e sentar nos últimos assentos, um idoso com seus bons anos de vida toma o lugar ao lado da jovem.
Era exatamente como mostram os documentários da savana africana, uma metáfora muito clara dos valores patriarcais da sociedade. A cena acontecia rápido a partir da perspectiva que tinha do fundo do ônibus: o livro abaixado, a moça notando os próximos atos, levantando-se do assento, ele virando para o lado para dar passagem com má vontade, ela acaba passando pelo pouco espaço e encostando sem querer no ombro dele, então, nesse momento havia aparecido o sorriso malicioso do homem.
A jovem muda de banco -Agora na selva rala da África era noite e mais uma tentativa de conquistar a caça. Ele tenta acompanha-la, mas me levanto na união de velocidade e discrição para que pudesse, antes dele abordá-la, novamente, sentei entre os dois. Ela tinha medo e não voltou a ler o livro. Agora os detalhes eram mais evidentes ao meu lado: um cabelo cacheado lutando pelo orgulho do Black Power. Ela voltou a ler quando o senhor saiu do ônibus. Sentia seus olhos amargos fitando ali os estudantes, os jovens, a resistência. Em seguida, dei o maior espaço que podia para a moça seguir em paz sua leitura.
A viagem até a estação de Osasco transcorreu em silêncio, interrompido outra vez apenas pelo barulho do motor ultrapassado do ônibus e pela senhora de bolsa vermelha que arranjara outro alvo para destilar seu veneno. O motorista, visto do retrovisor, parecia pior do que no início do percurso de 40 minutos. O caminho para a estação é margeado pelo rio Tietê, sempre fétido e poluído, mas ainda resistindo ao esgoto. De repente, a menina levantou do banco a pouca distância e virada para a porta disse o suficientemente alto para que eu pudesse ouvir:

-Somos a carne mais barata. Não agradeço, mas peço que entenda...

Um ponto antes do meu, ela desceu para sumir nos números de mulheres que já foram alguma vez atacadas, assediadas, intimadas, segundo a segundo esse relógio retoma essa contagem para dar lugar a mais uma vítima.


Na estação da cidade das esmeraldas, OZ


Com um vermelho ocre escurecido, compunham-se os velhos trilhos do trem, gastos pelo tempo. Não eram de lascas de esmeralda, apesar de ser “linha esmeralda” o que se lia no mapa, fazendo a mente relembrar as doçuras fantásticas dos sapatos vermelhos e das cidades lustrosas, contudo o amargo cheiro do lixo apodrecendo, próximo de mim, as risadas altas e as sacolas raspando umas nas outas retiravam esse charme literato.
A visão panorâmica era a única coisa que admirava. Um céu azul prestigiava a cena com nuvens escuras no horizonte poluído. Avistava os prédios por trás que se misturavam aos espetos dos churrascos de gato e uma construção pela metade, enquanto esperava pela minhoca de metal. A música pegou um ar mais pesado, eram melancólicas as palavras da cantora, sofridas e complexas, ainda que o ritmo fosse animado. À direita, a linha ocre continuava até onde o olho alcançava, e, quase deslizando como um caracol, a lataria de ferro vinha para atracar no vão de Osasco.
O vento forte começava a correr para meus olhos, logo, voltei os olhos à minha frente, uma garota voltava da escola: o uniforme monocromático não mentia. Talvez fosse sair, buscar alguma diversão depois do cansativo dia letivo. História, matemática e português, ou quem sabe Biologia. Ela tinha aberto a mochila para pegar a garrafa rosa purpurinada de unicórnios, quando vi de realce a capa de um livro com cenas de pássaros vindas pantanal e da caatinga. Dia abafado, roupas frescas e largas eram o padrão. Pessoalmente, não estava muito distinto da moça, com short e camisa. O trem começava a parar e todos na plataforma preparavam-se à correria e luta livre.
Vitorioso naquele MMA versão transporte público, tomo minha posição em frente à porta para descer na transferência para a linha amarela, em Pinheiros. A viagem estaria por volta de 35 minutos. Já passei tantas vezes pelo trajeto que já o decorei, as moradias na beira do córrego aberto, em meio aos condomínios e prédios de luxo. A velocidade do trem fazia a culpa da má distribuição de renda passar rapidamente, sem fazer estragos o suficiente na consciência.

-“Senhores usuários, boa tarde. Este trem tem com destino a estação Grajaú. A CPTM deseja a todos uma boa viagem. Os assentos com indicação são de uso preferencial, respeite este direito.”.

-Agora que a Judith falou, é minha vez. Desculpe estar incomodando a viagem de vocês. Não estou aqui para atrapalhar ninguém, apenas fazer meu trabalho. A operação dos guardas já levou toda a minha mercadoria e tudo o que me restou foram essas balas...

O som da desigualdade social e do desemprego gritava em meio à música. Mais uma viagem, mais uma constatação da irregularidade da voz dos alto-falantes dos vagões. Uma jornada das 8 da manhã às 6 da tarde, disputando os ouvidos de 7,3 milhões de passageiros na voz.
No meio das mais de 15 mil reclamações dentro dos pensamentos das pessoas, nas bocas dos que conversavam para abafar o comércio, a jovem moça continuava com sua garrafa na mão mexendo freneticamente no celular. Agora mais perto de mim e com total visão da sua face pelo reflexo do vidro, consigo distinguir seus traços. Pele alva, com sardas e cabelos tingidos com mechas em verde. Várias pulseiras no braço de pelos tão claros quanto os olhos.
-“Estação Presidente Altino, acesso à Linha 8 Diamante da CPTM. Desembarque pelo lado direito do trem. Ao desembarcar, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma. A CPTM informa, é proibido o uso de aparelhos sonoros sem o fone de ouvido”.
Mais e mais pessoas entravam, e agora a música possuía um ritmo indistinguível de adrenalina, enquanto os novos passageiros tomavam seus lugares. Seus assentos, seus cantos, em seus sutis espaços livres da caixa de sardinha abafada em que se convertia o vagão. Rostos jovens, adultos, idosos.
As idades, as cores, as roupas, até um terno sufocava um jovem, claramente incomodado. Mas aquele mundo que a moça da garrafa de unicórnios habitava era alheio a tudo o que acontecia. Ela estava a cerca de cinco passos de mim e, simultaneamente, a milhares de quilômetros. Seus cabelos curtos e coloridos destoavam daquelas pessoas esquecidas na seção do trem. A tecnologia era uma espécie de êxtase para o tédio de suas faces cansadas.
Depois de alguns minutos, um jovem se aproximou cuidadosamente. Tinha barba falhada nas bochechas, pele clara sem rugas ou marcas de espinhas, auge da juventude. Vestia a camisa da seleção brasileira de futebol, boné preto, claramente novo pela falta de desgaste, e uma mochila tão brilhante quando os olhos efusivos da moça. O espaço dela foi bruscamente diminuído, a jovem não estava mais distraída em seu próprio mundo. Era claro para mim o que iria...

-“Estação Ceasa, desembarque pelo lado esquerdo do trem. A CPTM informa, evite acidentes. Não Entre e não saia do trem, após o sinal de fechamento das portas.”.

As portas abriram tão rapidamente quanto fecharam. Quente como já não estava há um minuto. 25 °C do lado de fora e um ambiente de 30°C no amontoado de usuários da linha 9 - Esmeralda. O ambiente mudou drasticamente com a abertura da entrada. Até Tarsila ficaria anestesiada com as cores das pessoas, que buscavam os opacos assentos com um fulgor violento, tinham olhos em vermelho vivo. O dia fervia não apenas no exterior das gravatas tortas, mas em seu interior também. Entre o cinza dos prédios e aquela coloração, presenciava uma debandada do animal mais brutal de São Paulo, o homo sapiens accipit agmen ou homem que pega trem.
Nos cantos, sentados, acomodados, regulados ou transtornados, todos encontraram seu espaço, embora o único espaço que me interessasse fosse a distância do garoto de camisa amarela do glitter da garrafa rosa. Os movimentos eram tão livres quanto em uma camisa de força: eu custava em não encostar na pequena moça loira de mochila preta ao meu lado. Nas minhas costas, um cara engravatado, no reflexo do espelho, pouco conseguia distinguir seus tons, mas seus gritos de raiva ressoavam no vagão.

-“Mas como você não veio pra casa nesse final de semana, Ju? A gente combinou e você me ferrou assim? Não quero saber... Me deixa falar! Deixa eu falar Julia. Aonde cê tava, meu? Ainda sou seu namorado, quero sabe onde você tava...”

Não prestei mais atenção na possessividade do moço tão jovem com expressão feroz ao espelho. Quando olhei seu rosto franzido, preocupava-me com a pessoa com que ele falava. Estava em um paradoxo de preocupações: de um lado, uma desconhecida na outra ponta da linha telefônica; de outro o uniforme monocromático da garota, que tentava inutilmente visualizar.
-“Estação Villa Lobos-Jaguaré, desembarque pelo lado esquerdo do trem. A CPTM informa, é proibido o uso de aparelhos sonoros sem o fone de ouvido.”.

A cada curva em que os trilhos se aventuravam, tentava me esmagar contra a porta em busca de algum reflexo rosa do squeeze. Mais uma falha. Outro arco no caminho e só conseguia ver a grama sem cuidado do lado de fora, uma imagem comum na cidade, mais à frente, já eram visíveis as ruas cheias pelo tráfego e os edifícios de luxo. O sol completava-se imperdoável no céu. Tudo somava-se à minha apreensão com aquela menina, pois sabia que o fluxo de movimento daquele momento em frente só iria aumentar.

-“Estação Cidade Universitária, desembarque pelo lado esquerdo do trem. A CPTM informa, evite desconforto aos demais usuários, ao embarcar leve sua mochila nas mãos, colabore.”.

O ar entrou violento no espaço livre, e, à medida que algumas pessoas saíam, outras tomavam seus lugares. O vagão parecia mais cheio do que estava e quando, ainda que por um minuto, eu vi a jovem, ela era outra coisa. Não era mais aquele brilho rosado, o cândido uniforme estudantil: era uma expressão desolada com uma energia pesada emanando no local. A porta estava fechada, as pessoas me limitavam, as imagens de fora voando pela visão periférica, uma mescla de verde e tristeza. Não podia mais ver a camisa amarela tampouco a mochila reluzente do garoto. Muitas coisas passavam na minha cabeça, e todas estavam certas, mas não podia fazer mais nada diante da situação. Apesar, da minha consciência estar pesada, o aviso de chegada na plataforma soava:
-“Estação Pinheiros, ligação com a linha amarela, ViaQuatro.  Desembarque pelo lado esquerdo do trem. Ao desembarcar cuidado com o vão entre o trem e a plataforma.”

Trem chegando a plataforma da estação Pinheiros - Foto, Caio Andrade

Passageiros na plataforma da estação Pinheiros - Foto, Caio Andrade
Vista panorâmica da plataforma; Av. das Nações Unidas e ponte de transferência da linha Esmeralda à ViaQuatro-Foto, Caio Andrade

Pinheiros era o fim da linha. A confusão entre o sair e o entrar. A maré movia-se empurrando e puxando. Estava confuso com o tinha acontecido, embora o calor estivesse ardente, uma espécie de frio tomava conta de mim, era o vestígio da culpa. Sem respostas e com alguns minutos de alívio para correr as escadarias da subterrânea estação, não podia concluir o que teria ocorrido entre a moça sorridente e o jovem cheirando a novo.
Passageiros na espera do trem, às 18H - Foto, Caio Andrade
Havia sido empurrado para fora. As filas intermináveis, qualquer brecha entre uma pessoa e outra era, rapidamente, ocupada. Deixar-se no fluxo de Pinheiros é um programa de auditório: olhos para todas as direções, votos de desespero e esperança em busca de passagem, risco iminente de ser roubado, atenção intensa nos pertences dos bolsos e o grande desafio de se conseguir passar pelos bloqueios humanos.
 Seria mais poético caso alguém pudesse olhar à esquerda, através das grandes janelas depois das escadas rolantes. A luz invadia a ponte revelando o rio poluído sob o horizonte travestido de rosa, azul e o alaranjado sol, sem nuvens e límpido. A beleza não podia aquietar a apreensão pela jovem. Virou número, não pude impedir: restava-me descer os degraus para chegar ao compromisso.

As formigas de baixo da pele: Alighieri da ViaQuatro
O corpo principal da estação tem sua parte mais baixa a 31,25 metros da superfície, ao pisar do outro lado da ponte, que passa por cima da Marginal Pinheiros e a Av. das Nações Unidas, a construção mostra-se para os que chegavam. Ela é plena em todos os lados, não importa a direção que olhasse. As paredes longas com azulejos levemente avermelhado, o piso extenso cobria todo o chão sem falhas, era notável a estrutura, que ao contrário da CPTM sobravam espaços para caminhar. O tempo os seguranças vigiando, atentos com sua função, o perfil corpulento e hábil destacava a preparação dos profissionais.
A barraca de comida, logo abaixo de mim, em uma das pontas embaixo o cheiro do cachorro-quente prensado tomava conta, junto da fritura dos lanches. A imagem da sujeira no chão vinha na mesma hora na cabeça. Muitas vezes, enquanto voltava da faculdade passava pelo estabelecimento, os clientes sentados nos mais variados lugares para comer. Principalmente, na entrada da escada normal que permitia o acesso para o terceiro andar. Já no sentido oposto, havia as pessoas que saiam da ViaQuatro sentido CPTM buscavam por uma das 32 escadas rolantes disponíveis na estação. A medida que descia o primeiro lance dos degraus mecânicos, o lugar até o fundo parecia como os círculos de Dante, com as nove repartições infernais, embora as pessoas só quisessem pegar o metrô a metáfora era válida.
 Enquanto descia, olhava a área ao redor da cúpula da construção, tinha todo o seu fechamento de vidro, permitindo o alto índice de luz natural passasse para todos os níveis, até o das plataformas. Na obra de Dante todo o seu esforço em retratar o gelo impenetrável nos fossos e nos círculos de sua obra, Divina Comédia, se aproxima dos 3,8 bilhões de reais investidos para essa conseguirem moldar a natureza Luminosa entre as partes. Os primeiros raios a entrarem no recinto tem a exclusividade de clarear em abundância as estruturas de ferro, que apoiam a abóboda, mas também, a grande entrada com as catracas, bilheteria e os banheiros.
Nessa parte estava, ao fundo, uma loja de guloseimas e algumas comidas simples. Em suma, baratas como salgadinhos, refrigerantes, balas, águas e outras especiarias para os aventureiros dos trilhos manterem-se supridos na viagem. É nessa parte que os passageiros, que intitulei de Corredores se transvestem de condenados como no poema. Na direita, as escadarias comuns permitiam seguir à terceira parte do espaço. Embora, estivesse preso aos detalhes técnicos aqueles que se deslocavam adiante agrediam-me com os olhos e os choques de ombros, os viajantes almejavam descer e chegar aos 132 metros da plataforma no fim.
Já perto das catracas e, mais próximo dos seguranças, o fluxo corria apressado, as bilheterias mais à frente com movimentação constante, e seguindo a caminhada na curva brusca do grande pilar de sustentação, estavam os banheiros lotados. Agora todos queriam algo, descer e sair do ar quente que vinha da rua, comprar sua entrada na estação ou lavar o rosto, devido ao calor, todos ansiavam algo. Em cada canto do teto, as câmeras escondidas e perspicazes, assim como, os guardas observadores, eram um número alto, vigiando tudo e a todos. Enquanto, continuava o caminho as grandes telas de anúncios das marcas de produtos passavam brilhando com o trabalho da sua equipe de marketing. Ela tinha preparado elas e mais algumas telas à leitura das emoções angustiadas dos que passavam por ali até 2020, já que o assunto de vigilância é tão importante quanto persistir com a margem de lucros.


Escadas rolantes com redes de segurança da estação Pinheiros; Segundo Nível - Foto, Caio Andrade
Em cima das escadas rolantes, prosseguia e a luz do céu que ardia fora do aço e do concreto acabava progressivamente. Agora é a passagem pelo local mais vazio, se fosse como Dante pisava, naquele instante, no terceiro círculo do inferno, mas eram apenas os largos corredores, os quais já estavam ocupados por projetos de filas desorganizadas. À diante uma tela continha informações sem conteúdo agregador, era um passatempo bobo. Na área não tinha lojas, porém o tumulto estava sendo esmagado nas colunas de apoio.
A próxima parte não tinha nada de especial, é como um fosso do círculo anterior. Na Divida Comédia, é a extensa montanha que bloqueia a próxima ala de tortura das almas. Porém, o lugar era mais bem iluminado com a finalidade de trazer visco e charme à venda de bolsas e sapatos no pé da escada rolante. Não havia nada para ser notado. Um ar ríspido sem aromas completava o lugar.
Na quinta seção da estação, já se tem visão dos trilhos. As coisas aconteciam rápido. Uma euforia tomava conta das pessoas travadas pelo grande volume. Elas pareciam formigas correndo de um lado para o outro, absortas pelo metrô que chegava na malha férrea. Em contrapartida, embora estivesse com tempo, estava como todos: vendo qualquer brecha no volume de pessoas com o objetivo de dar mais alguns passos à frente. A quantidade de passageiros era sufocante, não havia como passar, mas quem estava à direita presenciava entretido na calmaria das telas brilhantes do celular.
O fim da viagem era diante das paredes de proteção de vidro, no sexto andar - plataformas. Era, definitivamente, um mar de cabeças, literalmente, uma infestação de formigas. Essa cena de superlotação se repete até o fim da jornada, Av. Paulista. Apertos e em meio às portas alguém sendo esmagado para entrar também. O vento forte do metrô chegando era a única coisa que aliviava o quente ar espalhado.

Entrevista: os pêsames repetindo-se

A correria de chegar no horário marcado acabava quando vi as placas indicando às ruas na parte interior da estação, que apareciam entre a multidão. Após, enfrentar um mar de pessoas que pegam o transporte, seja trem, ônibus ou metrô, ainda havia mais uma luta para passar no meio de tantas pessoas e chegar ao lado de fora. A rua em que eu marquei com a entrevistada era perto da saída da estação Consolação, três minutos no máximo já estaria na calçada. O relógio marcava 15h08min da tarde, alguns minutos atrasado pelo nosso combinado.
Cansado e abalado mentalmente, pisava, finalmente, para fora da odisseia de pegar o transporte público. Sobre o ocorrido, não pretendia e nem queria falar. Mesmo defendendo que as vítimas precisassem falar sobre com o intuito de lutar contra, não era eu o alvo, não podia me sentir mal. São mulheres de todas as idades que sofrem com essas atitudes invasivas. Em uma reportagem que tinha visto no jornal brevemente, durante a manhã: apontava, segundo o Datafolha, que 56% das mulheres entre 16 e 24 anos já sofreram alguma forma de assédio nos seus meios comuns de transporte.
Alguns minutos caminhando e desviando da variedade de pessoas que passavam pela Avenida Paulista, com a diferença de épocas, cores, vestimentas, objetivos, eram tantas. No cruzamento da Haddock Lobo com a avenida, alguns moradores de rua estavam montando seus improvisos para se proteger na noite. Era irônico ver a disparidade da vitrine da loja de roupas e o velho senhor, abatido pelo tempo.

Morador de rua perto da estação Consolação, Paulista - Foto, Caio Andrade

        Havia um contraste entre o inanimado dos manequins, que vestiam a nova coleção de verão, enquanto aquela pessoa maltratado pelos problemas sociais queria apenas sobreviver da maneira que era permitido para ele. Os corpos plastificados serviam para encantar motoristas que passavam por breves segundos, mas caso olhassem um pouco abaixo os olhos mirariam o simples de papelão e os lençóis cinzas.
Era 15h10min da tarde, chegava na cafeteria próxima ao temporário lugar que o idoso de cabelos brancos, roupas desgastadas e sujas da poeira, escolhera passar. Apesar da situação, ele com poucos dentes e amarelo, abria o sorriso à esperança. A porta de vidro na frente do café dava visão à bancada cheia de computadores portáteis, bebidas caras e orgânicas, as pessoas tinham sorrisos brancos abertos entre as risadas histéricas. Os que vestiam ternos estavam todos alinhados, já os que aparentavam ter roupas mais velhas vinham do brechó cool da região, que estava com desconto. Passando o balcão e os funcionários, que preparavam um habilmente os pedidos, ia às escadas de madeira ao fim do curto corredor.
Subindo olhei que a convidada não estava na área livre ao lado das escadas. Na direita, onde o primeiro andar de convivência da loja ficava, havia as mesas, perto paredão de vidro, todas estavam ocupadas pelos consumidores, que exalavam um cheiro forte de cafeína e baunilha. Nos assentos com mesas maiores, na esquerda do recinto, havia um ou outro lugar disponível, embora ela não estivesse lá.
Entrando no lugar, o clima estava frio, as vozes ficavam embaralhadas em meio das risadas e conversas, os jovens estudando para o vestibular. Nas páginas coisas exatas, formas biológicas, escritas em códigos sintetizavam a realidade para o que ela poderia ser, mais agradável. Sem achar a minha convidada sai dessa parte interna e segui às escadas de metal no espaço aberto, a cada passo o som humano diminuía brevemente, o vento quente marcava sua presença junto ao barulho da rua com os carros.
 No último quiosque dos bancos, com vista para rua, lá estava ela, um corpo inclinado, ansioso, desnivelado com a figura alegre que me lembrasse do cabelo rosa esvoaçante. A cena não combinava com a moça jovem que aparecia na memória, ainda assim, tentei parecer eufórico e contente por ela continuar me esperando.

- Oi, Lua, desculpe mesmo pela demora! Muitas coisas aconteceram e acabei me atrasando um pouco... Você está bem?

Aproximando-me e falando tentei parecer agitado, embora minha voz tivesse diminuído quando cheguei ao lado dela, e era evidente que algo estava. Seria uma entrevista rápida e animada, uma conversa sobre as várias vertentes que a arte assume na cidade de São Paulo. A jovem era uma amiga artista, Lua Ribeiro da Silva, 25 anos, formada em música e pós-graduada em sua história e evolução, uma artista independente de brilho próprio. Ela trazia em sua música uma forte influência das raízes brasileiras e criticava o abandono que a sociedade fazia da mesma. 
- Na verdade não está.
-Você quer conversar sobre? Podemos falar da entrevista outra hora. Não quero te incomodar. Posso te pedir alguma coisa? (Não havia nada em cima da mesa, então nada além do natural de pedir algo para o entrevistado, ainda mais nessa situação).
-Não, está tudo bem podemos conversar, apenas preciso de um tempinho para respirar. Cheguei agora a pouco também, não se preocupe.
-Vou pegar algo para nós, então.

O rosto avermelhado compunha junto da voz nasal uma evidência clara de choro. Sabia que algo a angustiava e com o tempo ela contaria. Para descontrair a situação desci e comprei uma água e um frappuccino de pão de mel para ela, apesar de cara não fazia questão, principalmente, naquele momento, no qual sabia que estava abalada. Retornei pelos dois lances de escadas, equilibrando a bebida gelada, o celular e a minha água. Quando voltei ao lugar onde tinha largado minhas coisas, sentei ao lado dela e coloquei as mochilas na outra parte do sofá.
- Desculpe a demora, está cheio lá embaixo.
- Tudo bem querido, muito obrigado. Não precisava ter comprado sabe disso, não é?
- Deixa disso mulher, tá tudo certo, faço nada além da minha obrigação.
- Então, sr. Jornalista mirim por onde quer começar a nossa entrevista?
- Bom, porque você não me começa explicando a razão dessa voz fanha?
Na tentativa de fazê-la rir tentei imitar uma voz nasalada, por algum tempo deu certo, mas então ela fechou a feição. Um sorriso de sutis covinhas entre as mechas do cabelo que caiam sobre o rosto. Eles possuíam movimentos espontâneos assim como ela. Escapava sempre de trás de sua orelha. As buzinas dos carros eram frequentes naquele momento, porém a concentração no que ela falava era maior.
- É um lance chato.
- Estou aqui para o que precisar, sabe disso né? Vamos lá, no que posso te ajudar?
- Enquanto estava vindo para cá, um cara me prendeu contra a parede do metrô. Em um instante pensei que era pelo fato de estar lotado. A gente sabe que nessas horas é impossível alguém encostar nas pessoas, tem pouco espaço, muita gente, enfim. Mas reparei que ele começou a me apertar mais, com as costas molhadas para tentar se esfregar em mim.
- Poxa, Lua...
- Não, e você não acredita, quando eu pedi licença, ele veio todo machão para cima de mim falando que não tinha espaço, quando claramente dava para ele ir para a frente. Ninguém teve a infeliz capacidade de tentar me ajudar. Tentei sair ainda, mas tinha uma moça assistindo alguma coisa no celular e não reparou no que estava acontecendo.
- Nossa, mas ninguém tava olhando não?
- Se estavam, me ignoraram. Aquela velha ideia de não falar nada e ceder espaço para que as coisas aconteçam. E você não vai acreditar, nas telinhas de canto, ainda estava passando um negócio de assédio. Essa porcaria, não ajuda em nada, ninguém vê.
- Na Esmeralda, também tem, mas eles avisam no alto-falante, pelo menos as pessoas ouvem.
-E, assim, quando começou a esvaziar e chegou na Consolação, o cara literalmente, pegou na minha bunda. Nunca xinguei tanto uma pessoa quanto naquela hora. Mas pense na minha mãe, agora multiplique por dez, era eu menino. Xingando e saindo o mais rápido que pude, todo mundo ficou me ouvindo, mas tenho certeza que ninguém fez nada dentro do vagão.
- Não te ajudaram nem quando você estava lá, que merda viu. Sinto muito por tudo...
- Não tem com o que se desculpar, Caio. Essas coisas infelizmente acontecem, só não achei que iria acontecer justo hoje, mas assim não se preocupe comigo viu? Sei que você tem dessas, mas eu sei cuidar de mim mesma.
Aquela velha luz havia retornado, até fazia pose vitoriosa contra o agressor. Ficamos conversando mais um pouco sobre o acontecido, ela contando que estava com raiva assim que saiu do metrô e que andando até chegar aqui começou a chorar um pouco, mas que concluiu que era uma pessoa resistente por si só. Que aquele criminoso não iria estragar seu dia e nem a sua primeira entrevista com alguém. Ela se sentou melhor depois de terminarmos o assunto e começamos a entrevista.
- Então, guerreira, como primeira pergunta gostaria de saber qual o seu grito para o mundo? (Disse efusivo, enaltecendo energia dela)
- Assim como nas minhas músicas, digo que nessa imensidão cinza, nunca poderão calar a minha vocação pelo combate.

Comentários

  1. O texto, as imagens, as musicas... O post em si está maravilhoso! O que mais me deixou boquiaberto foi a delicadeza na qual você detalhou cada palavra, cada momento... Você conseguiu nos colocar ai dentro e pra mim, foi como se eu estivesse passando por tudo isso. Você não falou apenas sobre o transporte publico, você conseguiu mostrar o que varias pessoas passam todos os dias. Tu mostrou a senhora que reclama e a pessoa que sofre abuso, seja ele verbal, sexual ou apenas pela aparência/raça. Conseguiu colocar exatamente tudo o que uma pessoa passa em apenas um dia ao utilizar o transporte publico numa "simples" matéria.
    Meus parabéns, matéria incrível!

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  2. Ótima narrativa que realmente evidencia o cotidiano difícil enfrentando pelas mulheres na sociedade brasileira. Entretanto estas seguem firme, lutando por si e pelas demais.

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  3. Caio seu posto está incrível, rico em detalhes, repleto de emoções, prende nossa atenção para continuarmos lendo. A veracidade dos fatos , tudo o que realmente vivemos no dia a dia desta cidade que não para.
    Parabéns,que está reportagem seja a primeira de muitas !!!!

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Os aspectos estéticos e culturais que transformam este jogo em uma obra Por, Andrew Henrique       Red Dead Redemption 2 , jogo desenvolvido pela Rockstar Games, foi lançado no último dia 26 de Outubro e já está conquistando o coração de diversos fãs ao redor do mundo. O motivo disso é bem simples: o jogo é uma grande obra de arte, tanto em questões estéticas, quanto em questões culturais. Foto Reprodução: Geeks United Desenvolvimento e enredo         Segundo a própria desenvolvedora, o jogo demorou o período de oito anos até ser finalizado, e como a empresa é popularmente conhecida por entregar produtos de extrema qualidade, eles utilizaram deste longo tempo para dar toda a atenção aos detalhes possíveis. Red Dead Redemption 2 se passa no ano de 1899, uma época onde o velho-oeste estava chegando ao fim, graças ao avanço da sociedade civilizada. O protagonista desta história se chama Arthur Morgan, um fora da lei que faz parte de uma gangue, dos quais